quinta-feira, 12 de abril de 2012

“Intelectuais têm pavor de revolução”

Para Iná Camargo, quando um mero intelectual diz que o projeto socialista está fora de pauta, ele está simplesmente expressando seu mais profundo desejo que nunca entre mesmo na pauta

por Jade Percassi


A professora Iná Camargo Costa, nesta entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, fala sobre arte e política em tempos de crise. Para ela, a arte convencional, uma das melhores expressões do fetichismo da mercadoria, em todas as suas modalidades, inclusive as chamadas vanguardas, é politicamente comprometida com os valores dominantes. A professora, que acompanhou de perto a luta dos grupos teatrais, principalmente de São Paulo, por políticas públicas para a cultura, afirma que não acha que o caminho da disputa pelos recursos públicos seja revolucionário. Para ela, o preço que os trabalhadores da cultura pagam pela opção reformista é a reprodução interna, tanto subjetiva quanto no plano da organização do trabalho, do que a vida no capitalismo tem de pior. Para Iná, na prática os artistas reproduzem todas as relações necessárias à manutenção do modo de produção capitalista e, reivindicando parte dos recursos públicos para a produção das suas obras e garantia da sobrevivência, demonstram estar completamente integrados ao sistema. “Todos pagam o preço da invisibilidade, inclusive política, a que estão condenados os que não se colocam como estratégia o confronto revolucionário com o monopólio dos meios de produção cultural”, afirma.

Iná Camargo, que atualmente, atua como dramaturgista da Cia Ocamorana de teatro e que anunciou que por ocasião de seu sexagésimo aniversário faz sua despedida de eventos públicos “de qualquer natureza” – afirma que o problema, portanto, não é reiterar que “o projeto socialista está tão fora de pauta”, mas discutir por que as organizações políticas, tanto partidos quanto movimentos, não o colocam em pauta. E coloca um critério: quando um mero intelectual diz que o projeto socialista está fora de pauta, ele está simplesmente expressando seu mais profundo desejo que nunca entre mesmo na pauta, pois intelectuais têm pavor de revolução.

A entrevista:

Em recentes participações em debates políticos, você tem reafirmado a presença histórica das linguagens artísticas nos processos políticos mais amplos, revolucionários e contrarrevolucionários. Quais os casos mais emblemáticos dessa relação entre arte e política?

Começando por colocar a questão em termos bem amplos, é preciso lembrar que as chamadas linguagens artísticas estão presentes o tempo todo em nossas vidas e sempre traduzem os valores da classe dominante. Basta prestar atenção ao modo de ser das nossas cidades, voltadas que são às necessidades do escoamento dos produtos da indústria automobilística: todos os sinais de trânsito exploram linguagens artísticas, desde as faixas de pedestres até as amplas avenidas, os parques, as pontes estaiadas etc. O discurso político, por mais convencional e conservador que seja, sempre tem ingredientes artísticos. A arte convencional, uma das melhores expressões do fetichismo da mercadoria, em todas as suas modalidades, inclusive as chamadas vanguardas, é politicamente comprometida com os valores dominantes. Nos debates de que participei ultimamente, a solicitação era tratar dos diferentes modos como artistas interessados no ponto de vista dos trabalhadores podem enfrentar esteticamente esses valores dominantes. Entendendo que o interesse era a luta de classes tal como se manifesta na trincheira da produção artística, achei que seria o caso de lembrar alguns episódios que a própria história da luta de classes já produziu, tanto no plano reformista quanto no revolucionário. Um critério político-dialético aqui é importante: até outubro de 1917 (revolução soviética), as manifestações reformistas podiam ser consideradas progressistas, mas depois da revolução elas adquirem um caráter contrarrevolucionário, de obstáculo claro ao avanço das funções e das próprias linguagens artísticas. Sem meias palavras: o mesmo critério que vale para a política vale para as artes.

Sem perder mais tempo com a arte contrarrevolucionária que nos assedia durante 24 horas por dia, passemos ao interesse pela revolucionária. Neste caso é obrigatório tratar daquilo que foi feito nos anos que se seguiram à revolução soviética. Como meu maior interesse é teatro, as intervenções que andei fazendo acabaram se voltando para o teatro de agitprop, a manifestação mais revolucionária possível em matéria de arte, de acordo com o critério acima enunciado. Por isso vou me referir apenas às relações entre política e agitprop. Os artistas que se dedicaram a ele – e entre os mais conhecidos estão Maiakóvski, Meyerhold e Eisenstein, para ficar só no campo do teatro – já tinham uma posição política clara: Maiakóvski e Meyerhold eram militantes do partido bolchevique e Eisenstein integrou-se diretamente ao exército vermelho em 1918. Para eles, a função da arte revolucionária era participar da luta pela construção do poder soviético – o mais democrático já inventado pela humanidade – de todas as formas possíveis, desde fazendo a propaganda direta do ponto de vista revolucionário sobre as questões da ordem do dia, até inventando formas totalmente inéditas, como a do “processo de agitação” em que o público era diretamente treinado para participar dos sovietes com desenvoltura e conhecimento de causa. Sendo o agitprop, disparado, a minha forma preferida de arte, nem gosto muito de perder tempo com as outras.

Simplificando bastante: as relações são antes dos artistas, do que das artes, com a política. Os que se decidem por um caminho revolucionário são livres para inventar as melhores maneiras de aproveitar todas as linguagens disponíveis. No mesmo processo, acabarão inventando suas formas próprias, ou inéditas, como foi o caso do teatro jornal, do processo de agitação, da peça dialética e assim por diante.

No caso brasileiro, qual foi o papel da produção artística na disputa de hegemonia ao longo da história recente?

Vamos combinar que eu não gosto muito de “disputa de hegemonia”, pois aqui no Brasil essa expressão assumiu desde os anos de 1970 uma conotação abertamente reformista, pela qual não tenho nenhuma simpatia. Isso no plano da política, porque no plano da arte ela pode ser tranquilamente absorvida pela expressão mais verdadeira, que é “disputa de mercado”.

Dito isto, é preciso reconhecer que desde fins do século 20 há uma forte movimentação de jovens supérfluos (que não encontram emprego no mercado cultural) tentando desenvolver uma produção artística fora do mercado, tanto para criticá-lo quanto se esforçando para fazer alguma coisa que pode ser identificada como “disputa de hegemonia”. Se não há dúvida sobre o fato de que isto realmente é feito em termos de obras, isto é, no plano simbólico, já não se pode dizer o mesmo quanto à estratégia, pois esses trabalhos desenvolvidos à margem do mercado cultural não têm a mais remota condição de disputar absolutamente nada com ele em termos de alcance. Basta pensar no número de pessoas que um capítulo de novela atinge e o número de pessoas que um trabalho de teatro de grupo tem a possibilidade de alcançar. Não é por outra razão que a chamada “Cultura fora do eixo” põe em pânico tantos militantes do teatro de grupo. Eu diria que, no âmbito do mercado que realmente está sendo disputado, eles, pelo menos, não são hipócritas, jogam limpo. Já disseram que é de mercado que se trata e se habilitam a disputar o fundo público para essa finalidade, inclusive deixando claro que estão muito bem sintonizados com estes tempos de “empreendedorismo” que caracteriza a ação de todo mundo no campo cultural.

Os que dizem disputar hegemonia precisam esclarecer melhor seus próprios objetivos, pois enquanto não o fazem estão perdendo de goleada para os militantes da “economia da cultura”.

Há exemplos na atualidade que indicam uma reativação desse fazer artístico que assume sua vocação eminentemente política?

Acho que os grupos teatrais, ou as brigadas, que se desenvolveram no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), claramente reativam a vocação eminentemente política do teatro, até porque foram criadas pela própria direção do movimento que desde o começo considerou necessária também a intervenção no âmbito cultural. Por haver esse processo no interior de um movimento político, os grupos teatrais que se aproximaram do MST – e isto no Brasil inteiro, a começar pelo Rio Grande do Sul – também desenvolveram essa vocação. Por outro lado, veteranos de outros episódios de politização mais ampla no país, como o União e Olho Vivo de São Paulo, entre outros, nunca perderam esse espírito. Mas todos pagam o preço da invisibilidade, inclusive política, a que estão condenados os que não se colocam como estratégia o confronto revolucionário com o monopólio dos meios de produção cultural.

Quanto aos grupos teatrais mais jovens, que apareceram nas ondas criadas por movimentos como o “Arte contra a barbárie” e “Redemoinho”, por serem majoritariamente integrados por filhos da classe média, é possível observar neles o interesse por essa reativação de um fazer artístico politizado em graus variados. Nota-se isso sobretudo nos assuntos, nos temas abordados e na opção por formas diversas do teatro épico. Mas a condição de classe média pesa muito, todos oscilam tipicamente entre euforia e depressão e, sobretudo, muitos reagem mal a qualquer proposta de organização política mais efetiva. Por isso o Movimento dos Trabalhadores da Cultura está demorando tanto para decolar. Tem muita gente que ainda acha que artista não é trabalhador!

Em que medida a organização interna dessa(s) categoria(s) se fortalece e/ou se fragiliza ao se deparar com as contradições da disputa por recursos públicos e a contribuição para a elaboração de um política cultural junto ao Estado?

Essa questão tem pouco interesse para mim, pois não acho que o caminho da disputa pelos recursos públicos seja revolucionário. O preço que os trabalhadores da cultura pagam pela opção reformista é a reprodução interna, tanto subjetiva quanto no plano da organização do trabalho, do que a vida no capitalismo tem de pior: começando pelo consumo privilegiado (por ser sempre e necessariamente para poucos) de todos os bens produzidos pela classe trabalhadora – de alimentos a verbas públicas (a renda do Estado provém da mais-valia arrancada dos trabalhadores agrícolas, industriais e dos serviços, não é mesmo?) – e culminando com a reprodução entre eles mesmos da estrutura social mais geral, na qual quem tem mais pode mais, prevalece a hierarquia do saber, a administração das pessoas, o paternalismo mais odioso, inclusive reclamado pelos mais jovens e assim por diante. Isto é: na prática os artistas reproduzem todas as relações necessárias à manutenção do modo de produção capitalista e, reivindicando parte dos recursos públicos para a produção das suas obras e garantia da sobrevivência, demonstram estar completamente integrados ao sistema. Não dá para imaginar que daí saia alguma alternativa revolucionária. Por isso venho perguntando com insistência aos artistas: vocês acham possível se dar bem e ser feliz neste mundo, tal como ele está organizado, ou a sua felicidade pessoal e profissional depende de uma mudança total? É claro que “mudança total” é código para revolução...

Do ponto de vista da disputa com a indústria cultural, há condições da produção artística alinhada com os interesses da classe trabalhadora confrontar o que está sendo imposto pela lógica do capitalismo? Quando um projeto socialista parece “tão fora de pauta” para a grande massa de trabalhadores não organizados, sem consciência de classe, etc.)

Enquanto não aparecer um movimento ou partido que ponha essa questão na ordem do dia, por certo que não há condições subjetivas. Quanto às objetivas, elas estão dadas desde a própria revolução de outubro. Aliás, este ponto já foi tratado por revolucionários como Lenin e Trotsky e, no Brasil, foi desenvolvido artisticamente por Mário de Andrade numa ópera chamada Café. Nesta obra acontece uma revolução que culmina com a tomada revolucionária dos meios de comunicação. No caso, o rádio. O problema, portanto, não é reiterar que “o projeto socialista está tão fora de pauta”, mas discutir por que as organizações políticas, tanto partidos quanto movimentos, não o colocam em pauta. Em outras palavras, desmascarar as organizações políticas que, ao insistir no ponto, continuam empurrando com a barriga a ação reformista que é, repito, contrarrevolucionária.

Um critério: quando um mero intelectual diz que o projeto socialista está fora de pauta, ele está simplesmente expressando seu mais profundo desejo que nunca entre mesmo na pauta, pois intelectuais têm pavor de revolução. Mas quando um dirigente partidário ou de movimento organizado diz a mesma coisa, ele está expressando o caráter reformista de sua própria organização, ou pelo menos da tendência que ele representa nessa organização. Um contraexemplo é o discurso do Gilmar Mauro no último congresso do MST.

Como você resumiria então os desafios correntes para a ativação simbólica da luta de classes?

Acho que já respondi a questão, mas especifiquemos um pouco mais. Não podemos ter a veleidade de achar que artistas sem qualquer vínculo com organizações revolucionárias propriamente ditas sejam capazes de avançar nessa ativação simbólica da luta de classes, para além do que já fazem em seus trabalhos, às vezes até sem consciência. Antes de mais nada, eles próprios precisam entender o que seja luta de classes pois, enquanto não o fizerem, nem ao menos saberão qual o seu lugar nessa luta. E nessa ignorância política tenderão sempre a reproduzir os valores dominantes. Para estes casos, recomendo sempre a leitura dos escritos políticos de Brecht, que nunca tergiversou sobre a questão. Ele diz com todas as palavras que o proletariado espera pelo menos três serviços dos intelectuais e, portanto, dos artistas: a) que desintegrem a ideologia burguesa (nos dois sentidos: cair fora e denunciar, criticar até reduzir a pó); b) que estudem, compreendam, expliquem e exponham artisticamente, sempre de maneira crítica, as forças que movem o mundo e c) que façam a teoria e a arte avançarem na direção dos seus interesses. Simplificando: ultrapassar o estágio em que os artistas se encontram, de completa ignorância política, é o principal obstáculo. Se este obstáculo for ultrapassado, os demais serão mais facilmente superados.
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A professora Iná Camargo Costa ministrou disciplinas e orientou dezenas de pesquisas; foi curadora e palestrante de inúmeros debates em que trouxe à tona posições críticas sobre a relação entre arte e sociedade, a função social da arte e os limites e possibilidades do teatro político no Brasil. Militante, acompanhou de perto a luta dos grupos teatrais, principalmente de São Paulo, por políticas públicas para a cultura. Atualmente, atua como dramaturgista da Cia Ocamorana de teatro, e por ocasião de seu sexagésimo aniversário anuncia aos camaradas sua despedida de eventos públicos “de qualquer natureza”. Professora aposentada do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas (FFLCH – USP), é autora de A Hora do Teatro Épico no Brasil (Graal), Sinta o Drama (Vozes) e Panorama do Rio Vermelho (Nankin).

Cronologia

1952 - Nasce Iná Camargo Costa, em Chavantes/SP
1970 a 1973 - Cursa Letras em Botucatu
1974 a 1984 - Professora de Português na rede estadual Ensino Fundamental
1975 - Inicia graduação em Filosofia na FFLCH USP
1975 - Adere ao C
entro Acadêmico de Filosofia (CAF), sob direção da Liberdade e Luta
1977 - Passa a integrar o Centro de Estudos sobre Arte Contemporânea (Ceac), coordenado pela professora Otilia Arantes
1979 - Conclui o Bacharelado em Filosofia
1980 - Retira-se da Organização Socialista Internacionalista
1980 - Ingressa no mestrado
1982 a 1984 - Leciona na Faculdade Nossa Senhora Medianeira
1983 e 1984 - Torna-se assistente do Conselho Estadual de Educação SP
1985 a 1988 - Leciona Filosofia na Unesp de Marilia
1986 a 1991 - Integra a Ala Maravilha Negra da Escola de Samba Camisa Verde e Branco
1988 - Mestre em Filosofia com a dissertação Dias Gomes - um dramaturgo nacional - popular
1988 - Ingressa no
Doutorado
1989 - Começa a ministrar aulas no curso de Letras, participando da criação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH/USP
1993 - Doutora em Filosofia com a tese Teatro épico no Brasil: de força produtiva a artigo de consumo
1999 - Participa da articulação do Movimento Arte Contra a Barbárie
2000 - Obtém a Livre-docência na Universidade de São Paulo
2003 - Aposenta-se
2004 - Torna-se assessora da Coordenação de Cultura do MST
2008 - Descredencia-se da pós-graduação da USP


Fotos: Cia do Latão
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Leia também a crítica de Iná Camargo Costa sobre o nosso espetáculo "Os filhos da Dita"

Filhos da indigna Dita

7 comentários:

  1. Lamentável essa verdade que ainda tem muita gente que acha que artista não é trabalhador.

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  2. Ufa! Que alívio! Não sou um intelectual! Não sou!!! Não sou!!! kkkkkkk

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    1. nunca vi tamanha euforia por tal constatação
      vou vibrar com vc tb

      EITA PÊNTIA

      *-* Mariana

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  3. Pergunto: a aposentadoria de um livre-docente de universidade pública estabelece vínculos com a lógica capitalista?

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    1. Não resisto em responder.
      Estabelece, claro. Mas não necessariamente com o capitalismo porco e consumista e escravagista, sim com direitos adquiridos. Ou será que alguém que denuncia o capitalismo deva viver na miséria?

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    2. Plenamente em concordância com Jurandir. Desde quando sobrevivência tem a ver com capitalismo?

      BARTIRA NO COLETIVO ESTRUTURA PRO INDIVÍDUO

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