sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A servidão voluntária

por Fábio Konder Comparato

As rebeliões populares que sacodem atualmente o mundo árabe têm, entre outros méritos, o de derrubar, não só vários regimes políticos ditatoriais em cadeia, mas também um mito político há muito assentado. Refiro-me à convicção, partilhada por todos os soi-disant cientistas políticos, de que um povo sem organização prévia e não enquadrado por uma liderança partidária ou pessoal efetiva, é totalmente incapaz de se opor a governos mantidos por corporações militares bem treinadas e equipadas, com o apoio do poder econômico e financeiro do capitalismo internacional.

Guerrilha do Araguaia continua reprimida socialmente

Bolsista produz pesquisa sobre a Guerrilha do Araguaia

“A gente não se sente só traumatizado, mas se sente vítima... Porque a gente nem sabia o que estava acontecendo. Eles, os militares do alto escalão, diziam que eram guerrilheiros financiados por Cuba, pela China, treinados por outros países para virem tomar o Brasil, era essa a informação que nós tínhamos dos comandantes generais. Então, a gente ia fazer aquilo com orgulho, pensando que tava defendendo o Brasil de uma invasão estrangeira. A gente ia pro tudo ou nada, eles diziam: se eles tomarem o país, a tua família vai ser sacrificada. Aquilo era uma maneira deles levantarem o brio do soldado, a moral do soldado.” 

O depoimento acima pertence a Dorimar, soldado que lutou na Guerrilha do Araguaia, movimento desencadeado entre as décadas de 60 e 70, que teve como propósito fomentar uma revolução socialista no Brasil, às margens do rio Araguaia, nas proximidades das cidades de São Geraldo e Marabá, no Pará, e de Xambioá, no norte de Goiás, região onde, atualmente, é o norte do Estado de Tocantins, também conhecida como Bico do Papagaio.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Pilotos não cumprem a ordem de bombardear cidade e derrubam o próprio avião

Um avião das Forças Aéreas da Líbia caiu nesta quarta-feira depois que o piloto Abdessalam Attiyah al-Abdali e o co-piloto Ali Omar al-Kadhafi se ejetaram com para-quedas ao se recusarem a obedecer as ordens para bombardear a cidade de Benghazi.

O não cumprimento da ordem, além da atitude magnanima desses pilotos, é uma importante mostra que o ditador Muammar Kadafi está ficando quase sozinho (*) nessa sua investida sanguinária sobre a população.

Hoje mesmo, antes desse epsódio, ofic
iais do Exército líbio na zona de Al Jabal al Akhdar, no nordeste do país, anunciaram, em um vídeo divulgado pelas emissoras de televisão árabes Al Jazeera e Al Arabiya, que já fazem parte da revolução do povo.

"Nós, os oficiais e os soldados das forças armadas na zona de Al Jabal al Akhdar, anunciamos nossa união total à revolução popular", disse um porta-voz militar das Forças Armadas líbias na região. O porta-voz anunciou ainda o compromisso desses militares em trabalhar para proteger as instalações públicas e privadas na região.

A terceira morte de Vladimir Herzog

Desde sábado, 19, um assunto anda inquietando muita gente que acredita finalmente viver num país liberto do medo de contar a sua, a nossa, história.

Revelar o passado, o direito à memória e à verdade, é inerente e respeitoso ao sentimento de liberdade.


O jornalista Audálio Dantas procurou o Arquivo Nacional, em Brasília, para finalizar o livro que está escrevendo sobre Vladimir Herzog, o Vlado, torturado e morto nos porões do DOI-Codi durante a ditadura militar, e teve impedido o seu acesso.

Vladimir Herzog, já sofrera duas mortes anteriores: o assassinato propriamente dito por agentes do Estado quando estava preso e o IPM (Inquérito Policial Militar) que o responsabilizou por sua própria morte, acusando-o de suicida por enforcamento.

Concordando com Ricardo Kotscho, colunista do iG, que publicou o artigo que deu dimensão a essa inquietação, pode-se dizer, portanto, que estão matando Vladimir Herzog pela terceira vez, impedindo Audálio Dantas o acesso à sua história.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Jarbas Passarinho fala sobre o Brasil do regime militar



Jarbas Passarinho foi ministro de três governos durante o regime militar no Brasil. Em entrevista exclusiva, ele revela cenas dos bastidores do poder como a assinatura do AI-5 e as denúncias de tortura.

Entrevista concedida a Geneton Moraes Neto na casa do entrevistado, em Brasília.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Pérolas da ditadura militar brasileira

Nos 20 anos de ditadura no Brasil não destruíram apenas a liberdade de expressão, a cultura, os sonhos, a vida de muita gente. Assassinaram também o requinte das frases, a beleza e a importância das palavras. Muito do que foi dito demonstra nas mãos de quem o Brasil estava entregue e o quanto a população estava sendo manipulada e tripudiada no uso de palavras à revelia na tentativa de um ilusório convencimento de que se estava promovendo o melhor para o país. Junto a isso era produzido intencionalmente a convicção de que esse era o caminho à ser seguido.

Às vezes escapavam frases tão sinceras e honestas, surgidas da mais profunda introspecção, que soltas acariciavam ouvidos como esporas. Esta por exemplo: Prefiro cheiro de cavalo do que cheiro de povo.

Confiram mais alguns impropérios que muitos tiveram a ousadia de proferir nas mais diversas situações, em entrevistas, campanhas, declarações...


A revolução foi um perfeito trabalho de equipe, da qual fui apenas uma peça na engrenagem.
general Castelo Branco, quando eleito pelo Congresso, por 361 votos contra 3, a presidente do Brasil

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Casa da Morte

Quando, no sábado passado, 12, o Globo publicou a matéria da descoberta do torturador que atuou no pior centro de torturas montado pela ditadura militar brasileira, aquele de onde nenhum ativista contra a repressão que fosse militante da luta armada saía vivo, poderia ficar mais difícil aos desinteressados da verdade persistirem em ocultar o horror e as torturas ocorridas nesse tempo. Poderia, pois o torturador descoberto nada revelou. Rancoroso, alegando debilidade física pelo câncer que o corrói, sua única declaração relevante foi: "Se alguém atirar em mim, estará me fazendo um favor".

Esse centro de torturas, em Petrópolis/RJ, era chamado de a Casa da Morte.

A existência desse lugar já foi abordada em outros artigos, mas sempre acobertada sua veracidade.

Em 1992, a Veja trouxe a matéria: "Autópsia da sombra. O depoimento terrível de um ex-sargento que transitava no mundo clandestino da repressão militar resgata parte da história de uma guerra suja". O ex-sargento, Marival Dias Chaves do Canto, mais conhecido por Chaves, foi o primeiro ex-agente dos órgãos de informação do Exército a contar tudo o que sabe, com minúcias esclarecedoras, do horror dos porões da ditadura militar.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Futebol e resistência política


Futebol e resistência política é o tema do Sábado Resistente de 19/02, promovido pelo Núcleo de Preservação da Memória Política e pelo Memorial da Resistência de São Paulo

A população brasileira lutou muito pela volta à democracia, com adesão de praticamente todos os setores da sociedade. A busca por liberdade nunca deu trégua aos ditadores. No esporte, principalmente no futebol, o desejo de volta ao regime democrático e de liberdade teve alguns exemplos notáveis, a partir de meados dos anos 1970, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, e em Minas Gerais, além de outros Estados.

Com certeza, a experiência da democracia corintiana foi a mais representativa da participação do mundo esportivo contra a ditadura militar e será um dos pontos de discussão no Sábado Resistente de 19/02. Lembraremos também a faixa exigindo anistia política, que foi aberta em janeiro de 1979 no Estádio do Morumbi, e que colocou o esporte na luta pela anistia política, fortalecendo os setores que já estavam nas ruas clamando por ela.

Ainda neste primeiro Sábado Resistente de 2011, faremos uma homenagem a Aderval Alves Coqueiro, o primeiro banido que voltou ao Brasil para lutar contra a ditadura.

Programação

14h - Boas-Vindas. Caroline Grassi (Memorial da Resistência de São Paulo)

Coordenação: Ivan Seixas (jornalista - presidente do Núcleo de Preservação da Memória Política do Fórum Permanente de ex-Presos e Perseguidos Políticos de São Paulo)

14h15 - Palestra e debate com Juca Kfouri (jornalista)

16h30 - Homenagem a Aderval Alves Coqueiro (primeiro banido a voltar para a luta contra a ditadura)

Os Sábados Resistentes são um espaço de discussão entre militantes das causas libertárias, de ontem e de hoje, pesquisadores, estudantes e todos os interessados no debate sobre as lutas contra a repressão, em especial à resistência ao regime civil-militar implantado com o golpe de Estado de 1964. Os Sábados Resistentes têm como objetivo maior o aprofundamento dos conceitos de liberdade, igualdade e democracia, fundamentais ao ser humano.

Sábado Resistente
Memorial da Resistência de São Paulo
Largo General Osório, 66 - Luz - Auditório Vitae - 5º andar
19 de fevereiro de 2011, das 14h às 17h30

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O 1848 árabe: os déspotas cambaleiam e caem

por Tariq Ali

Não pode durar muito mais porque os militares declararam que não dispararão contra seu próprio povo, o que exclui a opção da praça de Tiananmen. Se os generais (que sustentam este regime há muito tempo) faltarem com sua palavra podem dividir o exército e preparar o terreno para a guerra civil. Ninguém quer isso, nem os israelenses, que gostariam que seus amigos estadunidenses mantivessem o seu homem chave no Cairo tanto tempo que fosse possível. Mas isso também é impossível.

Washington quer uma “transição ordenada”, mas as mãos de Suleiman o Fantasma (ou o Senhor da Tortura como algumas de suas vítimas o chamam), que empurraram goela abaixo de Mubarak, também estão manchadas de sangue. Substituir um torturador por outro já não é aceitável. As massas egípcias querem uma mudança total do regime, não uma operação ao estilo do Paquistão, onde um civil sem vergonha substitui a um ditador uniformizado e nada muda verdadeiramente.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Bush é procurado por acusações de tortura

O ex-presidente reconhece ter autorizado a tortura de presos sob custódia dos Estados Unidos

O ex-presidente norte-americano George W. Bush pode ter desaparecido das manchetes dos jornais desde que deixou o cargo, em janeiro de 2009, mas os crimes atribuídos ao seu governo não são esquecidos.

O Centro de Direitos Constitucionais (CCR) divulgou na semana passada a “Acusação preliminar por torturas contra Bush”, um documento que descreve os aspectos centrais do caso contra o ex-presidente e a forma como violou a Convenção Contra a Tortura, assinada pelos Estados Unidos.

O CCR apresentou a iniciativa junto com outras 60 organizações, entre elas o Centro Europeu de Direitos Humanos e Constitucionais, com sede em Berlim. O fato coincidiu com o nono aniversário do dia em que Bush decidiu que os chamados “combatentes inimigos” tinham direito às proteções fundamentais previstas nas convenções de Genebra sobre presos de guerra. Duas vítimas de tortura se propuseram iniciar um processo penal em Genebra contra Bush, cuja chegada à Suíça estava prevista para hoje.

Nos casos de tortura, a legislação suíça exige a presença do acusado em seu território antes de iniciar a investigação. Ativistas pelos direitos humanos consideraram que a visita de Bush era a oportunidade perfeita para que esse país cumprisse sua obrigação como signatário da Convenção Contra a Tortura e para que ao ex-presidente chegasse a mensagem de que não gozaria de nenhuma exoneração especial, mesmo sendo ex-chefe de Estado. No entanto, Bush suspendeu a viagem.

“Bush reconheceu ter autorizado a tortura de presos sob custódia dos Estados Unidos”, disse à IPS a advogada do CCR Katherine Gallagher, também vice-presidente da Federação Internacional de Direitos Humanos. “Supõe-se que somos um país com um sólido Estado de direito e quando agimos com impunidade de forma tão descarada passamos uma péssima mensagem ao mundo”, acrescentou.

O afogamento simulado de um preso “é legal porque os advogados dizem que é legal. Não sou advogado”, disse Bush em novembro de 2010, ao ser entrevistado pelo jornalista Matt Lauer. “Claro que o faria”, respondeu o ex-presidente ao ser perguntado se voltaria a tomar a mesma decisão.

Além do caso apresentado pelo CCR, há mais dois iniciados na Espanha sobre as ações dos advogados constitucionais do governo Bush, o chamado “Bush 6”, autores do manual de tortura e arquitetos do contexto legal que o presidente invocou quando começaram as ações judiciais contra ele. “Os dois temas fazem parte dos esforços para designar responsabilidades que, espero, se fechem sobre os Estados Unidos”, disse Katherine à IPS. “O Bush 6 é integrado por pessoas que pretendem que a tortura seja aceitável, mas não é assim”, acrescentou.

A Casa Branca permanece em silêncio, enquanto juízes, de Madri a Genebra, investem contra o governo anterior. Nem o presidente Obama nem ninguém de seu staff deram apoio a algum dos cidadãos que lutam contra a impunidade. A Anistia Internacional e a Human Rights Watch (HRW) pediram a Washington que investigue de forma exaustiva as denúncias contra Bush e também o fim imediato da impunidade. “Ao menos, deveriam investigar a possibilidade de indiciamento”, disse à IPS a porta-voz da HRW, Laura Pitter. “Não há razão para que os tribunais dos Estados Unidos não iniciem uma investigação desse tipo, mesmo se baseando apenas no que Bush reconheceu publicamente”, acrescentou.

Bush é um torturador e deve ser lembrado como tal”, disse Gavin Sullivan, do Centro Europeu de Direitos Humanos e Constitucionais. “Ele é responsável por autorizar torturas contra milhares de pessoas em Guantânamo e nos locais secretos que a CIA tem em todo mundo. Bush tem razão de estar preocupado, porque todos os países têm a obrigação de processar os torturadores”, acrescentou. E, talvez, mais importante do que as acusações sejam os sobreviventes, cujas vozes estão apagadas ou continuam ocultos em Guantânamo e que merecem que a justiça seja feita.

por Kanya D’Almeida - IPS América Latina
http://www.ips.org/ipsbrasil.net/nota.php?idnews=6766
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Em autobiografia, Bush defende a tortura

Em novembro de 2010, o ex-presidente norte-americano George W. Bush lançou um livro de memórias relatando algumas experiências marcantes de sua vida. Surpresa para alguns e nenhuma para outros, Bush assume a responsabilidade pela tortura de um dos prisioneiros políticos de Guantânamo, que autorizou o que chamou eufemisticamente de "técnicas duras de interrogatório", em um homem suspeito de ter idealizado o plano dos atentados de 11 de setembro de 2001.

O ex-presidente relata em detalhes o ocorrido, reconhecendo que recebera uma ligação da CIA pedindo autorização para realizar um "afogamento simulado" no suspeito, ao que Bush teria respondido: "Com certeza".

Para justificar a prática hedionda em um país que procura se apresentar como democrático, Bush afirma que a tortura de Mohammed, preso no Paquistão em 2003, pôde "salvar vidas".

Bush defende também na obra sua decisão de ocupar o Iraque, afirmando cinicamente que "o povo iraquiano está melhor com um governo que responde a eles em vez de torturá-los e assassiná-los". Sobre o fato de que nunca foi encontrada uma única "arma de destruição em massa" no Iraque, que foi o principal argumento para a invasão, o relato do ex-presidente, em tom emocional, é ridículo: "ninguém ficou mais chocado e bravo do que eu quando não encontramos as armas. Tinha uma sensação de náusea todas as vezes que pensava nisso. E ainda tenho".

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Mães Argentinas: 34 anos buscando os desaparecidos

por Jadson Oliveira

Mirta Barravalle: uma das 14 mães que fizeram a primeira quinta-feira de protesto em 30 de abril de 1977.
Eram as "loucas" da Praça de Maio.

No dia 30 de abril de 1977, uma quinta-feira, um grupo de 14 mães, desesperadas, foi à Praça de Maio, em frente ao palácio do governo (Casa Rosada), em Buenos Aires, protestar e pedir informações sobre seus filhos que tinham sido seqüestrados pelos agentes da última ditadura militar (1976-1983). Uma tremenda temeridade!
Os argentinos vivia
m sob o império do terrorismo de Estado, comandado pelo então general Jorge Rafael Videla (hoje cumprindo pena de prisão perpétua por crimes de lesa humanidade). Os policiais as empurravam para se afastarem do palácio e ordenavam, como costumam fazer em épocas de tirania diante de “reuniões” públicas: “Circulem… circulem…


As "madres" da Linha Fundadora deram origem ao extraordinário movimento que desafiou a ditadura argentina no auge do terror.

As mães então começaram a circular em redor da pirâmide que fica no centro da praça, rodeadas por forte aparato militar. Circularam naquela quinta-feira e voltaram na quinta-feira seguinte. E depois na outra quinta, e na outra, e na outra. Queriam porque queriam ao menos notícias de seus filhos queridos, sumidos nas trevas do terror. Já não eram 14, e sim centenas. Se tornaram as Mães da Praça de Maio (Madres de Plaza de Mayo). E não pararam mais de circular, mesmo quando três delas – Azucena Villaflor, presidenta da entidade, Esther Ballestrino e María Ponce – foram também sequestradas e também desaparecidas. (No dia 18/11/2010 elas comemoraram 1.700 manifestações na praça, 1.700 quintas-feiras).


As "rondas" já são mais de 1.700: sempre às quintas-feiras e sempre ao redor da pirâmide.

Eram “as loucas” da Praça de Maio. Poucos podiam ou tinham coragem de apoiá-las, os democratas (os ainda vivos e/ou ainda em liberdade) rareavam, os combatentes e organizações da esquerda, a maioria peronistas, estavam sendo dizimados, a Igreja Católica, enquanto instituição, estava do outro lado – quando as “madres” chegavam à praça, as portas da Catedral Metropolitana, que está na mesma praça, eram fechadas -, os grandes jornais, as emissoras de rádio e TV, também estavam alinhados com a ditadura.


Nas comemorações especiais centenas de militantes, das mais diversas entidades, engrossam as manifestações das "madres".

Mas as “loucas” insistiram. Hoje, quase 34 anos depois, as “madres” – às quais se somaram as “abuelas” (avós), os “hijos” (filhos) e os familiares dos desaparecidos – continuam a circular em torno da pirâmide da Praça de Maio todas as quintas-feiras, a partir das 3 horas da tarde. Com o lenço amarrado na cabeça, símbolo do movimento, muitos com os dizeres: “Aparición con vida de los desaparecidos”, exibem nos broches e cartazes as fotos, nomes e datas do sequestro de seus parentes assassinados.

Continuam a circular mesmo que a ditadura tenha sido derrubada há pouco mais de 27 anos e que muitos repressores/torturadores estejam na cadeia: só no ano passado a Justiça proferiu 110 condenações e cerca de 800 acusados estão na fila do banco dos réus, a maioria já com prisão preventiva. Mesmo depois de se tornarem uma referência internacional quando se fala de defesa dos Direitos Humanos. Seu êxito político é fantástico, não é à toa que uma gorda fatia da agenda da presidenta Dilma Rousseff, na sua recente visita à Argentina, foi dedicada às “madres” e “abuelas”.


Marcha da Resistência para comemorar o Dia Internacional dos Direitos Humanos.

E há números significativos: a organização não governamental Equipo Argentino de Antropologia Forense (EAAF), das mais de 1.200 exumações feitas, já conseguiu identificar os corpos de 446 desaparecidos (sem incluir identificações realizadas por outras vias), conforme informação de Daniel Bustamante, investigador do EAAF. (O número sempre mencionado de desaparecidos é em torno de 30 mil. Claro que é uma estimativa. Há registro oficial de cerca de 10 mil); quanto aos bebês roubados das presas políticas, cuja estimativa chega ao redor de 500, 102 já tiveram sua identidade restituída, segundo dados computados por Abuelas de Plaza de Mayo.


Sara Holmquist perdeu seu irmão: "Ele era secundarista. Nunca tivemos notícia dele".

Alerta, alerta, alerta, que estão vivos todos os ideais dos desaparecidos” é um dos gritos de guerra mais freqüentes nas quintas-feiras, em meio aos cantos, poemas e discursos, principalmente quando as manifestações ganham maior dimensão em datas especiais, como no último 9 de dezembro, quando as “madres” comemoraram o Dia Internacional dos Direitos Humanos (elas anteciparam um dia, porque na data oficial, dia 10, houve muitas comemorações promovidas pelo governo federal). A imagem mais eloquente do ato – foi a 30ª. Marcha da Resistência – era uma imensa faixa (lembrando uma serpente, aqui é chamada de “bandera”), contendo cerca de 3.500 fotos e nomes de desaparecidos, carregada pelos manifestantes – de umas três quadras da Avenida de Maio até a Praça de Maio. Outras consignas repetidas na praça: “Que digam onde vão com os desaparecidos”, “Paredão para todos os milicos que venderam a Nação”.

Mirta Barravalle, de 86 anos, é uma das 14 “madres” que protagonizaram a histórica “ronda” de 30 de abril de 1977. No último dia 3, quinta-feira, ela estava mais uma vez na praça, com um grupo de manifestantes circulando a pirâmide, tendo à frente a faixa Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora. Depois relembrou os tempos difíceis em que eram chamadas de “loucas” e poucos lhes davam atenção: “Os policiais afastavam a gente do passeio do palácio, empurravam para fora da praça, a Catedral nos fechava as portas…” Pendurado no pescoço, um pequeno cartaz com as fotos e os nomes da filha e do genro, Ana Maria Barravalle e Julio Cesar Galizzi, sequestrados em 25 de agosto de 1976. “Este ano vai completar 35 anos de busca, sigo buscando, até hoje nada, minha filha estava grávida de cinco meses, o bebê até hoje também não encontrei”, diz ela.


Cristina Dithurbide (à direita, com a amiga Margarita Noia): "Eram militantes Montoneros, é preciso dizer isso, porque é a identidade política deles".

Já Sara Holmquist, de 65 anos, da província (estado) de Tucumán (noroeste do país), participa sempre de atos de protesto pelos desaparecidos, em memória de seu irmão, Luis Adolfo, sequestrado em 29/05/76. Aponta para o enorme cartaz pendurado no pescoço: “Ele era secundarista, era da UES (União dos Estudantes Secundaristas), se estivesse vivo teria hoje 54 anos. Nunca tivemos notícia dele”. E Cristina Dithurbide exibe seu broche com o retrato do casal Roald Montes e Mirta Noemí, na época com 28 e 19 anos. Mirta era sua irmã. “Os dois foram assassinados em La Plata (capital da província de Buenos Aires) em 22 de novembro de 1976, junto com mais quatro companheiros. Eles eram militantes Montoneros, é preciso dizer isso, porque é a identidade política deles”, explica. (Montoneros era uma organização de guerrilha urbana, da esquerda peronista, muito ativa nos anos 60 e 70).


Manifestação da Associação das Mães da Praça de Maio, liderada por sua presidenta Hebe de Bonafini.

Também as “madres” que atuam aglutinadas na Associação das Mães da Praça de Maio (há cinco entidades relacionadas com as “madres”, veja nota abaixo) vão sempre às quintas-feiras à Praça de Maio. Seus membros, no entanto, já não se dedicam à busca dos desaparecidos. Têm, na verdade, uma atuação bem mais ampla e diversificada, com uma fundação, a Universidade Popular, publicações próprias, biblioteca e até um projeto de construção de casas populares. Sua presidenta, Hebe de Bonafini, é atualmente uma líder política de grande influência e está, inclusive, engajada na campanha para reeleição da presidenta Cristina Fernández de Kirchner. Na quinta, dia 3, ela estava à frente de um grupo de manifestantes, falando de suas atividades e da política nacional. A principal faixa dizia: apoiamos o projeto nacional e popular, que é atualmente a proposta central do kirchnerismo (ou peronismo kirchnerista).


As “madres” são cinco entidades.
Uma das entidades que, apesar de menos conhecida, tem uma atuação que se soma ao trabalho das "madres" e "abuelas".

Fala-se muito das “madres” (mães) e também das “abuelas” (avós) da Praça de Maio, relacionadas com a busca dos presos políticos assassinados pela ditadura argentina e também com os bebês retirados das mães. A ideia que passa é que se trata de uma única organização. Mas há, na verdade, cinco entidades envolvidas em atividades às vezes convergentes e às vezes nem tanto, certamente de difícil percepção para a maioria das pessoas, especialmente quando são estrangeiras.

Das cinco entidades, a de maior volume de atividades e maior inserção na política argentina, a Associação das Mães da Praça de Maio, não cuida da busca dos desaparecidos, embora esta busca tenha sido a ação inicial de todas as “madres”. A associação tem outros objetivos, conforme menciono acima. A ela estão ligadas a Universidade Popular Mães da Praça de Maio e a Fundação Mães da Praça de Maio.

Quem continua cuidando da busca dos desaparecidos e, em decorrência, atuando em prol do julgamento e punição dos repressores, é, como o próprio nome indica, Mães da Praça de Maio – Linha Fundadora. Uma terceira entidade é Avós da Praça de Maio, que tem uma atuação semelhante, mas com ênfase na busca e identificação dos bebês roubados das presas políticas.

E há mais duas entidades, cujos membros muitas vezes participam de manifestações comuns: H.I.J.O.S. – Hijos y Hijas por la Identidad y la Justicia contra el Olvido y el Silencio (Filhos e Filhas pela Identidade e a Justiça contra o Esquecimento e o Silêncio); e Familiares de Desaparecidos e Presos por Razões Políticas.

Fotos: Jadson Oliveira
http://www.fazendomedia.com/madres-argentinas-34-anos-buscando-os-d...

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

As canções do exílio - Uma labareda que lambeu tudo



Documentário de Geneton Moraes Neto conta a saga dos baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil no exílio forçado pela ditadura militar e reúne depoimentos de Jorge Mautner e Jards Macalé.

Só voltem quando forem autorizados”, foi a advertência que Caetano Veloso e Gilberto Gil ouviram em julho de 1969, após passarem por celas de vários quartéis do Rio depois de ficarem em prisão domiciliar em Salvador e assim partirem para um exílio forçado que se arrastou até janeiro de 1972.

Foram presos por oficiais do 2º Exército, duas semanas depois da decretação do AI-5 e dois dias depois do Natal de 1968, jamais souberam o motivo, admite-se que possa ter sido pela participação em passeatas, ou em movimentos estudantis, ou por suas nada convencionais performances em festivais, ou ainda por suas atitudes de rebeldes tropicalistas, que tanto incomodavam civis e militares.

O documentário

As canções do exílio - Uma labareda que lambeu tudo”, dividido em três partes de 50 minutos, estreou ontem (8), hoje (9) será apresentada a segunda parte e amanhã (10) a última, pelo Canal Brasil às 22h.

O documentário gira em torno de depoimentos do período da prisão, exílio e a volta de Caetano Veloso e Gilberto Gil ao Brasil e Jards Macalé e Jorge Mautner, que chegaram a Londres em seguida. De posse dos depoimentos, Geneton intercalou entrevistas antigas, realizadas por ele em áudio e vídeo desde 1970.

Geneton, tendo começado a vida como jornalista e caído na TV quase por acaso, esses anos todos deixou de lado o que realmente queria fazer: cinema documental.

- Este é o meu rompimento amigável com o jornalismo e a retomada da carreira de cineasta interrompida pela TV - diz Geneton, antecipando que os 150 minutos da série serão reduzidos a 120 para o cinema.

Caetano Veloso, Gilberto Gil, Jards Macalé e Jorge Mautner revelam como foram os anos longe do Brasil, a censura e a volta para casa. Caetano, por exemplo, lembra a pressão que sofreu para compor uma música exaltando a Transamazônica. Gilberto Gil revela que foi obrigado a fazer um show para a tropa do quartel onde estava preso. Contam a história cronologicamente. A detenção, o ano-novo passado atrás das grades, os tempos de prisão domiciliar, a proibição de fazer shows e gravar discos, a vinda ao Rio de um chefe de polícia de Salvador para mostrar aos superiores o absurdo da situação, epsódio que gerou "a ordem" que saíssem do país.

A locução é do ator Paulo César Pereio, um ex-militante do Partido Comunista, que combina aos depoimentos o sentimento de quem já sofreu com o regime.

fontes: João Máximo / bahiaempauta.com.br

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Primeiro desaparecido da ditadura pode ser localizado

Buscas pelos restos mortais de Virgílio Gomes da Silva, militante político contra a ditadura, serão retomadas ainda este mês, no cemitério de Vila Formosa. 

O desfecho para a angústia que atinge os familiares do dirigente da Ação de Libertação Nacional (ALN), Virgílio Gomes da Silva, pode estar próximo do fim. A descoberta de uma vala clandestina no final do ano passado no cemitério de Vila Formosa reacendeu as esperanças para a localização de seus restos mortais. As buscas pela ossada do ativista político, interrompidas em dezembro, serão retomadas a partir de 14 de fevereiro.

Virgílio encabeça a lista de desaparecidos políticos da ditadura militar. O comandante Jonas, como era conhecido pelos companheiros da ALN, está desaparecido há quase 42 anos. Preso em 29 de setembro de 1969 por agentes da Operação Bandeirantes (Oban), o embrião do famigerado DOI-Codi paulista, foi trucidado pelos militares no mesmo dia.

O sequestro do embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick

Os órgãos de repressão nutriam ódio particular por ele. Virgílio comandou uma das ações mais espetaculares contra a ditadura. O sequestro do embaixador norte-americano, Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro de 1969, rendeu notoriedade internacional ao grupo guerrilheiro e nocauteou momentaneamente a ditadura.

A operação foi um golpe de mestre. De uma só tacada, obrigou os militares a reconhecerem publicamente a existência da tortura no Brasil, além de conseguir a libertação de 15 ativistas políticos que estavam presos nos porões do regime.

Os generais foram obrigados a aceitar as exigências feitas pelos guerrilheiros, para obterem a soltura do embaixador. Um manifesto redigido pelo jornalista e ex-ministro do governo Lula, Franklin Martins, que também participou da ação, denunciando a violência praticada pelos militares e contendo os nomes dos 15 presos políticos que deveriam ser libertados em troca do embaixador norte-americano foi lido nos meios de comunicação televisivo e radiofônico, além de ter sua publicação impressa nos jornais.

Forças repressivas

A ousadia revolucionária, no entanto, sofreu um revés após a libertação do norte-americano. A retumbante derrota imposta pelos guerrilheiros à ditadura intensificou a ira das forças repressivas. A caçada contra esses ativistas não cessou. Os militares estavam ávidos por dar uma resposta contundente à desmoralização sofrida pelo sucesso da operação compartilhada pelos guerrilheiros da ALN e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).

O comandante que colocou em xeque o poder dos generais durante dias foi convertido no principal alvo da fúria da caserna. Sua captura era questão de tempo. Vinte cinco dias após o sequestro do embaixador, Jonas caiu. A sanha de seus algozes ordenava punição exemplar. Nenhum de seus ossos foi preservado. Dos órgãos vitais, o único que restou intacto foi o coração, os demais foram dilacerados pelas brutais torturas a que foi submetido.

Mesmo assim, os militares consideravam pouco. Matar Virgílio não bastava, era preciso impor punição duradoura à família do guerrilheiro que desmoralizou a ditadura. Por isso, seu corpo nunca foi entregue. O comandante Jonas foi vítima do método de sofrimento prolongado, utilizado pelos militares, que foi propagado centenas de vezes ao longo dos anos de chumbo.

Mais de 400 ativistas políticos continuam desaparecidos ainda hoje no país

Segundo o representante do Fórum de Ex-Presos Políticos, Ivan Seixas, além de Virgílio, estão enterrados no cemitério de Vila Formosa, mais nove ativistas que combateram a ditadura militar. Alceri Maria Gomes da Silva, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Antônio dos Três Reis de Oliveira, da ALN, Antônio Raymundo de Lucena, da VPR, Devanir José de Carvalho, do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Edson Neves Quaresma, da VPR, Joelson Crispim, da VPR, José Idésio Brianezi, da ALN, José Maria Ferreira de Araújo, da VPR e Sérgio Roberto Correa, da ALN.

Pelo menos três deles foram enterrados com nomes falsos. Joelson foi sepultado no terreno 677 da antiga quadra 57, como Roberto Paulo Wilda, José Maria, como Edson Cabral Sardinha, na sepultura 119 da antiga quadra 11 e Edson, no terreno 66 da antiga quadra 15, com o nome de Celso Silva Alves. A maioria dos demais ativistas foi enterrada na quadra 57. Alceri na sepultura 849, Antônio de Lucena na 253, Antônio de Oliveira na 848 e José Idésio na 620. Devanir foi enterrado no terreno 273 da quadra 19 e Sérgio e Virgílio na quadra 50, atual 47, nas sepulturas 1.038 e 1.147 respectivamente. Ambos foram sepultados como desconhecidos. Sérgio sob o número 3.700 e Virgílio sob o número 4.059/69.

Para Ivan, a localização dos desaparecidos da ditadura é um objetivo que deve ser trilhado sem trégua. “Temos de lutar pela abertura de todas as valas clandestinas e o Estado tem a obrigação de identificar essas pessoas”, ressalta.

artigo de Lúcia Rodrigues

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Repressão e tortura: o horror

"Contra a pátria não há direitos", informava uma placa pendurada no saguão dos elevadores do prédio da Polícia Civil em São Paulo. Era o templo da “tigrada”, policiais e militares com ordem e permissão para matar, muitos sob o comando de Sérgio Paranhos Fleury.

O delegado era violento. Começava estapeando, depois torturava e, se perdia a paciência, atirava mais de uma vez.

Filho de legista, Fleury cresceu em delegacias. Desde os 17 anos estava na polícia. Fazia parte de uma unidade particularmente agressiva, a Delegacia de Roubos, quando foi “recrutado” pelo regime militar, em junho de 1969. O delegado viria a ser a peça-chave da Operação Bandeirante, a Oban. A missão era estratégica: criar um organismo que reunisse elementos das Forças Armadas, da polícia estadual e da Polícia Federal, para o trabalho específico de combate à subversão. Na prática, o núcleo reuniu os elementos mais radicais, corruptos e violentos dessas organizações. Fleury e sua trajetória são um retrato acabado do que se passou nos porões da ditadura brasileira. Contra o terror, investiu-se no horror.

A repressão não nasceu com o AI-5, mas foi com ele que viveu seu auge. Houve torturas e mortes desde os primeiros anos de governo militar. O Departamento de Ordem Política e Social (Dops), subordinado ao governo estadual, existia desde os anos 20. O Serviço Nacional de Informações foi criado em 1964. A Polícia do Exército torturou logo após o golpe. As manifestações de 1968 foram reprimidas com dureza. Só que o AI-5 foi entendido como licença para matar e, de fato, quem matou em nome do combate à subversão não foi incomodado nos anos seguintes.

Dizer que a máquina repressiva se organizou após 1968 é uma imprecisão por conta disso. E também porque a desorganização era o fundamento da lógica da repressão. O capitão torturador passava por cima do major, o delegado trabalhava contra o governador. Nesse sentido, a repressão subvertia a ordem mais do que os guerrilheiros. Isso não quer dizer que não houvesse cadeias de comando, mas que os porões criaram sua própria hierarquia – clandestina, com ramificações nos altos escalões e, no mínimo, sua conivência.

Fleury, por exemplo, teve plenos poderes ao chefiar a Oban. Quando se instalara no Dops, já levara com ele todo seu “Esquadrão da Morte”, um grupo de policiais envolvidos em esquemas de corrupção, proteção a traficantes, desvio de contrabandos. Um deles, conhecido como Fininho, carregava no chaveiro, como amuleto, a língua de um dedo-duro que metralhou. “Os comandantes militares sabiam que tinham colocado um delinqüente na engrenagem policial do regime”, diz Elio Gaspari no livro A Ditadura Escancarada, referindo-se a Sérgio Paranhos Fleury.

Quando o delegado esteve em alta, unidades policiais enviavam suspeitos para sua base, uma delegacia na rua Tutóia, no bairro do Paraíso. Atrás daquelas paredes, os presos viviam o inferno. As sessões de tortura desse período estão entre as piores de que se tem notícia, repletas de choques elétricos, afogamentos, palmatórias, queimaduras, espancamentos em pau-de-arara e estupros individuais e coletivos. Algumas vítimas se suicidaram anos depois. A influência do delegado ia além dos limites do estado. Em 1969, Fleury matou Carlos Marighella com ajuda do Centro de Informações da Marinha (Cenimar), que deteve no Rio padres que tinham ligações com o guerrilheiro e os ofereceu à tortura do delegado.

Nos quartéis, também ocorriam maus-tratos e mortes. Houve aulas de tortura, ministradas por oficiais. Os que se destacavam na repressão recebiam medalha cujo título seria irônico, não fosse o contexto macabro: Ordem do Grande Pacificador. Fleury recebeu a sua em 1971. Henning Boilesen, presidente da Ultragás que foi morto pela esquerda, também ganhou uma.

Para os altos escalões da República, a tortura tinha dois resultados práticos: obter informações sobre as atividades clandestinas da esquerda e exterminar seus participantes. O primeiro era visto como uma necessidade. O segundo, como acidente de trabalho. Mas é difícil acreditar que a morte da vítima fosse indesejada quando se olha a extensão dos ferimentos de alguns presos. Chael Charles Schreier, estudante de medicina que pertencia à VAR-Palmares e foi morto em 1969, tinha mais de 50 machucados. Seu queixo exibia um corte com cinco pontos. A cabeça sofrera hemorragia e havia sangue “em todos os espaços” do abdômen. O intestino fora rompido e dez costelas estavam quebradas, segundo relato de Elio Gaspari, que examinou a necropsia de Schreier e a qualifica como “a mais detalhada do regime”.

Fleury se destacou tanto em obter informações quanto em matar os esquerdistas – Marighella era seu maior troféu. A ofensiva de que participou em 1969 colocou a luta armada contra a parede e dizimou os guerrilheiros. Para isso, contou com um passo em falso dado pela esquerda no início do ano. Até 1968, o Exército se ressentia da falta de informação e fora surpreendido seguidamente por ações da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) e da Ação Libertadora Nacional (ALN). Empolgada pelo sucesso de seus atentados, roubos a banco e justiçamentos, a VPR planejou atacar o Palácio do Governo paulista e o quartel do 2º Exército. Para isso, esperava a deserção de Carlos Lamarca, campeão nacional de tiro e capitão respeitado no 4º Regimento de Infantaria. Ele iria tomar seu quartel e fugir com 560 fuzis e dois morteiros. Mas o plano é descoberto, seus participantes são presos e Lamarca foge às pressas do quartel com 63 fuzis e uma Kombi – o ex-capitão morreria em 1971.

Após interrogatórios e torturas, os presos deram ao Exército um grande trunfo: conhecer a estrutura da VPR. Era a primeira vez que isso acontecia. Em pouco tempo, ocorreram dezenas de prisões e a organização foi desarticulada. Os presos levaram a integrantes de outras siglas. O Grupo Tático da ALN caiu, com alguns dos militantes cercados pessoalmente por Fleury. Em Belo Horizonte, o Colina foi destroçado. No Rio, o MR-8 se desfez como pó.

Repressão vira o jogo

A repressão virou o jogo com menos de dois meses de AI-5. Passou à ofensiva e aperfeiçoou suas engrenagens. Cada Arma tinha um centro de informações que, a exemplo do Cenimar, ia a campo contra a subversão. Os Dops se ligaram à estrutura militar pela Oban, iniciada em São Paulo e exportada a outros estados. Em 1970, a Oban integrou-se aos DOIs e aos Codis, que eram regionais e pertenciam ao Exército. Cada órgão tinha agentes que seguiam pessoas, grampeavam telefones, analisavam interrogatórios e recolhiam boatos para “fichar” suspeitos. A repressão compôs dossiês de pelo menos 60 mil nomes. Todos os órgãos caçavam subversivos. Prender mais, matar mais, era motivo de disputa e status.

Essa estrutura precisava de dinheiro. Dados do Projeto Brasil: Nunca Mais indicam que a Oban receberia verbas até de multinacionais, como Ford e General Motors. “Na Federação das Indústrias de São Paulo, convidavam-se empresários para reuniões em cujo término se passava o quepe”, relata Gaspari.

No início da década de 70, a repressão exterminava "terroristas" e, ao mesmo tempo, ampliava seus alvos – uma forma de justificar sua própria existência. Gente sem vínculo com a guerrilha virou “suspeita de subversão” e foi tratada como “inimiga”. A cúpula do regime aplaudia, a julgar pela Lei Fleury, de 1973, feita para beneficiar o delegado, ao permitir que réus primários aguardassem julgamento em liberdade.

A repressão só iria se modificar em 1974. Pressões da sociedade e a desordem que os porões criaram na própria estrutura militar contribuíram para isso. Fleury então vira motivo de preocupação para o general Ernesto Geisel, ainda antes da posse. “É um bandidaço sem-vergonha”, definiu o general Golbery do Couto e Silva em conversa com o futuro presidente. Desvalorizada, a face mais cruel do regime mergulha na clandestinidade, onde se prolongaria até os anos 80, com ataques a jornais da imprensa alternativa e à Ordem dos Advogados do Brasil, por exemplo.

Fleury morreu em maio de 1979, por suposto afogamento, após cair de seu iate, em Ilhabela (SP). O comando da polícia paulista impediu que fosse feita autópsia no corpo.
texto de Alessandro Meiguins
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Como funcionavam os porões

As estratégias dos agentes que torturavam e matavam

Captura
Ao descobrir a localização de um suspeito, a polícia o prendia no esconderijo ou na rua. Mas houve gente que foi solta legalmente para depois “sumir” ilegalmente

Laudo falso
Médicos compactuaram com as torturas, forjando autópsias para vítimas que haviam morrido ou mantendo o preso em condições de falar durante interrogatórios

Maus-tratos na cela
Choques elétricos e o pau-de- arara foram dois dos métodos mais usados pelos torturadores, que, quando agiam em delegacias, usavam os gritos das vítimas para aterrorizar os demais prisioneiros

Grampeado
Agentes montavam dossiês sobre suspeitos, acompanhando suas atividades e conversas telefônicas, por meio de escuta ilegal. Todas as Forças tinham setor de informações

Aulas de tortura
Nos quartéis, houve casos isolados de aulas de tortura, ministradas por oficiais diante de platéias de dezenas de militares. Os presos eram tirados da celas e supliciados “ao vivo” para ajudar nas explicações

Métodos radicais
Espancamentos, palmatória e afogamentos também foram técnicas usadas nos maus-tratos. Contra mulheres, houve estupros individuais e coletivos.

Desova
Quando ocorria um “acidente de trabalho”, com a morte do preso, eram montadas falsas versões de tiroteio, cenas de suicídio ou o corpo era enterrado como indigente

Medalha
Militares e civis ganhavam medalha por serviços prestados à repressão. Fleury ganhou a sua. O nome parecia ironia: Ordem do Pacificador.
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"Os fantasmas me apavoram"
depoimento de militante da ALN que foi torturada

“Quando a polícia chegou, meu bebê tinha 33 dias. Parto complicado, fiquei 20 dias internada. Eu mesma abri a porta quando tocou a campainha. Era o delegado Fleury, com outros dez policiais. Queriam levar eu e meu marido e deixar meu filho no Juizado de Menores - Terrorista não tem família, não tem que ter filho -, ele falava. Enlouqueci. Gritei tanto que concordaram em deixar o bebê com meus sogros. Na prisão, apanhei muito. Meu leite saía sem querer e se misturava ao sangue. Deram uma injeção para parar. Esperneei, tentei fugir. Enfiaram a agulha na minha coxa. Perdi o leite e a capacidade de ter filhos. Eles me achavam bonita e faziam o que bem queriam de mim. Tinha o delegado Ivair, gordo e grisalho. Gostava de ‘brincar’. Mostrava um revólver dourado, que tinha balas ‘cor-de-rosa’, dizia que só usava para matar mulher. Foram nove meses de prisão, 50 dias seguidos sem tomar banho. Esses fantasmas me apavoram ainda hoje. Eu me agarro à vida e sigo em frente. Sei que, por pior que seja, vale a pena viver.”

Rose Nogueira, presa em novembro de 1969, militava na ALN falsificando documentos, arrumando esconderijos e dando abrigo ao guerrilheiro Carlos Marighella. Hoje preside o grupo Tortura Nunca Mais-SP .
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Túmulo de Marighella em Salvador

Não tive tempo para ter medo”. A frase gravada na lápide de mármore desenhada pelo arquiteto Oscar Niemeyer e que está exposta no túmulo de Carlos Marighella, no Cemitério Quinta dos Lázaros, resume a trajetória de luta e ideal libertário do líder comunista baiano assassinado no dia 4 de novembro de 1969, em São Paulo, numa emboscada das forças repressoras do regime militar. A figura humana em posição de luta e cinco projéteis de escopeta cravados na altura do peito – formando a constelação Cruzeiro do Sul, que também consta no centro da bandeira brasileira – completam a criação que denuncia a perseguição aos que lutaram contra a ditadura militar em defesa da democracia.

Marighella foi surpreendido por uma operação comandada pelo então delegado do Dops (Departamento de Ordem e Política Social) Sérgio Paranhos Fleury – conhecido pela crueldade com que perseguia opositores do regime militar.

Hoje, essa obra do arquiteto Oscar Niemeyer, comunista e igualmente perseguido pelos militares, está quase desfigurada por pichações.
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Memória

O advogado e ex-deputado estadual Carlos Marighella Filho, que só aos 8 anos de idade conheceu o pai, forçado que foi a viver na clandestinidade, o define como uma pessoa “desassombrada” e de “ação”, características que o próprio Marighella revelou ao dizer, numa entrevista concedida em 1968, que não teve tempo para ter medo. Comunista como o pai e também vítima da repressão – foi torturado pelo coronel da reserva Carlos Alberto Brilhante Ustra e condenado com 14 comunistas baianos pela Lei de Segurança Nacional –, Marighella Filho revisita a memória e fala do pai, que se tornou militante do PC aos 18 anos e fez da poesia a arma de luta pela liberdade.

A primeira prisão de Marighella foi consequência de um poema tecendo críticas ao interventor da Bahia, general Juracy Magalhães, em 1932. Obrigado a interromper os estudos por conta da militância, vai para o Rio de Janeiro. Em 19
36, é preso novamente, depois passa seis anos no presídio de Fernado de Noronha. Marighella Filho lembra que um jornal da época, estampando a foto do pai com um outro comunista, ambos com hematomas no rosto, trazia a seguinte manchete: “Em nome da boa profilaxia social, a polícia do Rio de Janeiro acaba de prender dois homens afetados de comunismo”. “Toda aquela violência contra um poeta era justificada, como se fosse uma doença contagiosa”, lamenta o filho sobre o pai.
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Carlos Marighella, poeta desde o ginásio na Bahia

No Ginásio da Bahia ficaria notória a prova de Física que o estudante Carlos Marighella respondeu em 40 versos, cujo tema era “Catóptrica, leis de reflexão e sua demonstração, espelhos, construções de imagens e equações catóptricas”. Cursava, então, o 5º ano do Ginásio da Bahia, em 23 de agosto de 1929, aos dezoito anos. O tema da prova fora sorteado na sala de aula, antes do exame, um detalhe pouco conhecido. Marighella assim respondeu:

Doutor, a sério falo, me permita,
Em versos rabiscar a prova escrita.

Espelho é a superfície que produz,
Quando polida, a reflexão da luz.
Há nos espelhos a considerar
Dois casos, quando a imagem se formar.

Caso primeiro: um ponto é que se tem;
Ao segundo um objeto é que convém.

Seja a figura abaixo que se vê,
o espelho seja a linha betacê.

O ponto P um ponto dado seja,
Como raio incidente R se veja.

O raio refletido vem depois
E o raio luminoso ao ponto 2.
Foi traçada em seguida uma normal
o ângulo I de incidência a R igual

Olhando em direção de R segundo,
A imagem vê-se nítida no fundo,
No prolongado, luminoso raio,
Que o refletido encontra de soslaio.

Dois triângulos então o espelho faz,
Retângulos os dois, ambos iguais.

Iguais porque um cateto têm comum,
Dois ângulos iguais formando um.

Iguais também, porque seus complementos
Iguais serão, conforme uns argumentos.

Quanto a graus, A+I possui noventa,
B+J outros tantos apresenta.

Por vértice opostos R e J
São iguas assim como R e I.

Mostrado e demonstrado o que é mister,
I é igual a J como se quer.
Os triângulos iguais viram-se acima,
L2, P2, iguais, isto se exprima.

Imagem de um ponto

Atrás do espelho plano então se forma
A imagem, que é simétrica por norma.

Imagem de um objeto

Simétrica, direita e virtual,
E da mesma grandeza por final.

Melhor explicação ou mais segura
Encontra-se debaixo na figura.

A prova em versos rendeu a Marighella nota dez e ficou exposta no corredor do colégio até 1965, protegida por uma moldura envidraçada, como exemplo para os demais estudantes. O Ginásio da Bahia ficava no Bairro de Nazaré, hoje Colégio Central.
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Carlos Lamarca, um militar brasileiro, que desertou do exército durante o regime militar e se tornou um guerrilheiro comunista.

Como guerrilheiro, integrante da Vanguarda Popular Revolucionária, foi um dos principais opositores ao regime militar, visando à implantação de um regime socialista no Brasil. Devido a isto, foi condenado por "traição e deserção" pelo Exército Brasileiro. É o único homem na História do Brasil a receber o status de traidor da nação por ter combatido o regime militar, instaurado no Brasil desde 1964. Por outro lado, assim como Onofre Pinto que também abandonou o exército para lutar contra o regime, é considerado pela esquerda um importante revolucionário brasileiro.

Trinta e seis anos após a morte de Lamarca, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça sob supervisão do Ministro da Justiça Tarso Genro dedicou sua sessão inaugural a promovê-lo a Coronel do Exército e a reconhecer a condição de perseguidos políticos de sua viúva e filhos.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Escuela de Asesinos

publicado por Luis Nassif





A School of Americas especializou-se no treinamento de ditadores, torturadores e assassinos latino-americanos. Localizada no quartel de Fort Benning nos EUA, ela trocou de nome em anos recentes, mas seus métodos continuam os mesmos.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Revolução dos Jasmins contra as autocracias

Entrevista com Sami Naïr
por Eduardo Febbro, via Agência Carta Maior


A chamada Revolução dos Jasmins que iniciou na Tunísia há algumas semanas se estendeu como um rastilho de pólvora para vários países árabes, e não os menores. O Iêmen e, sobretudo, o Egito, vivem hoje revoltas que têm características revolucionárias. Trata-se de um fenômeno tanto mais único na medida em que o discurso ocidental sempre tratou os países árabes como incapazes de assumir coletivamente um destino democrático. Tunísia, Argélia, Mauritânia, Iêmen e Egito não só desmentem esses argumentos como também abalam desde a raiz as ditaduras que governam esses países há décadas com mão de ferro e privilégios exorbitantes.

Alguns analistas asseguram hoje que já não se trata de saber que regime cairá primeiro, mas sim qual se salvará dessa onda de aspirações democráticas cujos protagonistas são as classes médias, os setores menos favorecidos e os jovens, que se organizam por meio da internet e das redes sociais. O mais moderno do mundo irrompe como instrumento de comunicação e protesto contra poderes dinossáuricos. Os protestos revelam também a ruptura sem remédio entre autocracias longevas, respaldadas historicamente pelo Ocidente, e a legitimidade popular.

O sociólogo e filósofo Sami Naïr, professor de Ciências Políticas na Universidade Paris VIII, presidente do Instituto Magreb-Europa da mesma Universidade, analisa em entrevista ao jornal a originalidade e as causas desta revolução árabe. Autor de ensaios e análises sobre política internacional, Naïr aponta como primeiro fator alimentador da revolta o fato central de que o medo mudou de campo. É o poder que enfrenta agora um povo que perdeu o medo.

A entrevista

A Revolução dos Jasmins iniciou na Tunísia com a imolação de um jovem e logo se alastrou para outros países. Agora, a revolta chega ao Egito e ao Iêmen. Você dizia em uma análise que, assim como ocorreu primeiro na América Latina e depois nos países do leste europeu, certa parte do mundo árabe está despertando para a história.

- Sempre pensei que, ao menos no século XX, o laboratório dos povos foi a América Latina. A Revolução Russa não pode ser entendida sem a Revolução Mexicana. Os latino-americanos inventaram todas as formas de luta possíveis e imagináveis. Na América Latina, se experimentaram as guerrilhas, as lutas políticas, os despotismos, as ditaduras. A partir dos anos 80 e 90, as ditaduras caíram em quase todos os países da América Latina. Esse movimento contra as ditaduras se desenvolveu em outros lugares do mundo, por exemplo, nos países do leste europeu a partir da queda do Muro de Berlim. Agora, esse movimento de fundo que iniciou na América Latina está atingindo todos os países da orla árabe do Mediterrâneo e mesmo além, na península arábica, como está acontecendo no Iêmen.

O problema reside em que, contrariamente ao que ocorreu na América Latina, o movimento que eclodiu nestes países árabes não tem direção, nem organização, nem programa. É um movimento totalmente espontâneo com duas características fundamentais: em primeiro lugar, trata-se de um movimento que destrói definitivamente a ideia de que estas sociedades estão condenadas a viver com o perigo extremista e fundamentalista, por um lado, e, por outro, com a ditadura, que seria uma suposta garantia necessária contra esse perigo fundamentalista. Agora está se demonstrando que o problema é muito mais complexo e que estes países não querem experimentar nem o islamismo nem o fundamentalista, mas sim que, basicamente, desejam a democracia.

O segundo elemento importante, e que pode lembrar o que ocorreu na América Latina, reside no fato de que há uma aliança circunstancial entre as camadas mais pobres e humildes, sem verdadeira inserção social, e as camadas médias empobrecidas nestes últimos anos. Na última década, todos esses países padeceram de um empobrecimento muito importante das classes médias e agora há uma fusão entre esses setores e a base popular, as classes pobres totalmente excluídas do processo de integração dentro da sociedade.

Se essas revoltas forem até o fim nestas autocracias árabes estaríamos vivendo uma autêntica revolução mundial, um giro decisivo na história de nossa concepção dos sistemas políticos mundiais. Sempre se acreditou que os países árabes eram incapazes de assumir uma forma de democracia popular e participativa.


- Isso corresponde a um discurso muito depreciativo construído pelos países ocidentais, pelo capitalismo internacional cuja sede é a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Econômico (OCDE), Estados Unidos e União Europeia. Esses atores querem que haja estabilidade nos países árabes e para isso necessitam de regimes fortes e ditatoriais, porque o que importa a eles são duas coisas: em primeiro lugar que essa gente não emigre e, em segundo, que as fontes de recursos petrolíferos sejam garantidas. Por isso desenvolveram esse discurso em total sintonia com os ditadores que sempre repetiram: “nossos povos carecem de maturidade política e cultural e, por conseguinte, não podem ter acesso à democracia”.

Sabemos que tudo isso é falso, que as aspirações democráticas são muito fortes nesta região do mundo. Creio que o que está acontecendo agora demonstra isso de maneira muito clara. Cada situação é específica. Não se pode misturar o que ocorreu na Tunísia, um país que tem uma tradição laica e elites ilustradas muito fortes, com camadas sociais muito coesas, com a situação do Iêmen, onde impera um sistema tribal baseado na dominação despótica de um clã. A única coisa similar é o grau de dominação e a forma de controle, apoiada na polícia e no exército.

A explosão social no Egito tem matizes inéditos. No Egito o exército desempenha um papel central, onde o presidente, Hosni Mubarak, pertence a ele e onde quem está chamado a substituí-lo, seu filho Gamal Mubarak, é um liberal que não é bem visto pelas forças armadas.


- O caso egípcio é muito particular, em primeiro lugar porque o país é um velho Estado de direito. Provavelmente seja o Estado de direito mais antigo do mundo. O Estado de direito moderno foi constituído por Mohamed Ali entre o final do século XVIII e início do XIX, ou seja, antes que nós na Europa soubéssemos o que era isso. Mas esse Estado foi destroçado pelos ingleses no século XIX. Em todo o caso, o filho de Mubarak, Gamal, não representa a democracia. Gamal Mubarak é o elemento chave da nomenclatura que domina o país em sua vertente mais liberal. A questão do liberalismo não pode ser concebida unicamente como liberalismo econômico, salvo se se trata de comparar o Egito com a China. Na China temos um despotismo político neocomunista e um liberalismo selvagem que encarna na verdade a dominação de uma elite burocrática. No Egito, é diferente. É impossível que se possa organizar um sistema liberal sem democratização da sociedade. É indispensável evitar que o Egito se transforme em uma república hereditária onde o pai ditador nomeia seu filho como futuro ditador liberal. As pessoas estão buscando outra coisa.

Querem a democratização da sociedade para que a sociedade civil possa escolher por meio de um debate democrático transparente. O filho de Mubarak é como seu pai. As pessoas não o querem porque já tem o exemplo da Síria, onde o filho substituiu o pai e terminou instaurando um sistema mais ou menos liberal, mas com a mesma ditadura.

Você assinala que o que começou a ocorrer na Tunísia e logo se espalhou para outros países é que o medo mudou de lado. O medo acabou.

- Isso foi muito importante neste processo. Eu estava na Tunísia quando tudo isso começou e vi como o medo mudava de campo. A revolta tunisiana estourou na localidade de Sidi Bouzid, com a imolação do jovem Mohamed Bouazizi. A partir dali, tudo se transtornou. Até esse momento, o regime tunisiano estava baseado no temor. Mas a morte de Mohamed Bouazizi mudou essa situação, sobretudo pela atitude do então presidente Bem Alí, que foi visitar a família da vítima. As pessoas se deram conta que quem tinha medo era o poder. O mesmo está ocorrendo no Egito. O mais importante nestas revoltas é a vitória do imaginário que significa que transformaram a relação com o poder: agora são os ditadores que devem temer os povos. Isso não significa que amanhã vamos ter uma revolução em todas as partes. Não. O movimento pode avançar, pode recuar, não sabemos o que vai acontecer. Mas o que sabemos, e isso já foi percebido pela população, é que os poderes podem mudar quando os povos querem mudar suas condições de vida e ousam enfrentar o poder para escolher seu próprio destino.

Por isso penso que estamos diante de uma onda que terá desdobramentos. Estamos na mesma história que os povos da América Latina abriram nos anos 80. Logo se seguiram os povos do Leste europeu nos 90 e agora estamos vendo isso acontecer com estes povos árabes. Não podemos esconder que o que está ocorrendo é também uma consequência da globalização. A globalização é má socialmente, mas tem algo bom, que é a globalização dos valores democráticos nas sociedades civis.

Tradução: Katarina Peixoto